Reseñas Varias sobre este libro
Bárbara Heliodora, crÃtica de teatro e especialista na obra de Shakespeare, costumava dizer que qualquer brasileiro poderia encenar “O Auto da Compadecida”. Não porque a peça é excessivamente simplória, mas porque qualquer homem ou mulher nascido no Brasil se enxerga ali. O “Auto” é verdadeiro para qualquer brasileiro porque a realidade de um paÃs atravessado por pobreza e sacralidade nos é imensamente familiar – é com ela que convivemos todos os dias, direta ou indiretamente, por vivência ou relato. Temos intimidade com a imagem da famÃlia que sofre, mas crê; que, encurralada por violências de toda sorte, olha para cima e acredita que a Mãe de Cristo ouve suas preces. Esse reconhecimento, esse princÃpio de identidade entre vida e arte, seria suficiente para que surgisse algo de vital, de verdadeiro e abrasivo, nos nossos mais modestos exercÃcios de atuação.
Pensei em começar essa resenha dizendo, num raciocÃnio parecido com o de Bárbara Heliodora, que qualquer pessoa poderia escrever um romance sobre primeiros amores. Ok, há um risco de exagero: sempre há alguém que não cabe no “qualquer pessoa”, como há muita gente que não cabe no “qualquer brasileiro” da crÃtica de teatro, mas a linha de pensamento se mantém. A universalidade da experiência, seja ela da pobreza e da fé, seja do afeto desmedido, se preserva. Digamos: poucos de nós tivemos a vida fatiada no meio por um assassinato, uma truculência mortal, uma queda da graça. Poucos passamos uma noite numa ilha deserta; pouquÃssimos estivemos prestes a ser executados. Mas praticamente todos passamos por aquele que é o marcador quintessencial da transição infância-juventude, ainda que por vezes venha muito depois de a infância ter terminado: o primeiro amor. Praticamente todos experimentamos a transfiguração da existência em tempestade tumultuosa, repentina, que condensa toda a geometria do universo na imagem de alguém.
Assim – diz Victor Heringer, que no processo de elaboração de “O amor dos homens avulsos” pediu a internautas que lhe dissessem coisas sobre seus primeiros amores –, “Dimitri amou Cristina ou Estefânia, como Lucas amou Ana Carolina e Ana amou Murilo. Como Carolina amou Victor, MarÃlia amou Leonardo, Rodrigo amou Amanda, Marcelo amou André, Nathalia amou Rodrigo, Mariana amou Cadu e Laura amou Antoine”. Algo nos moldes da célebre quadrilha de Drummond, com a diferença crucial de que, nesse caso, existe a promessa silenciosa da devolução — o presente mais precioso do mundo. Ninguém nunca ama de volta na quadrilha do poeta. Sem falar, é claro, na sensação muito mais veemente de onipresença, de que o amor está em todos os lugares, em todos os momentos. Enquanto você lê esta resenha, pessoas no seu bairro ou na sua cidade amam com uma intensidade que lhes é inédita, e que desenraÃza princÃpios profundos. Eu, quando tive o meu primeiro amor, gostava de pronunciar as três sÃlabas do nome do meu menino repetidamente: o peso de cada uma me parecia exato, moldado com precisão e delicadeza, elegante, luminoso.
“O amor dos homens avulsos” é um livro sobre um primeiro amor, mas não é sobre nenhum desses primeiros amores enumerados no parágrafo acima, nem sobre as dezenas de outros que Victor Heringer elenca num dado momento da obra. O amor em questão é o de Camilo – o narrador-protagonista – e Cosme. Camilo amou Cosme, Cosme amou Camilo, e essa contradança abriu um buraco tão abissal no peito do narrador que, vejam só, foi preciso erigir um romance em homenagem ao que transcorreu.
“O amor dos homens avulsos” é a revisita nostálgica de Camilo à sua infância nos anos 1970, vivida no bairro fictÃcio e escaldante do QueÃm, no Rio de Janeiro. Esse movimento reminiscente flerta com uma focalização no agora, que pouco a pouco o suplanta. Se o primeiro capÃtulo da obra diz respeito ao surgimento do mundo – quando, profere o narrador, “o chão era sujo de uma lama fervente e pegajosa” –, as páginas de encerramento debruçam-se sobre um presente agridoce e em tom menor, sob cuja superfÃcie memórias calmamente pulsam. Eu não saberia dizer se o romance é um esforço de reconciliação: seria por demais simplista afirmar que, ao fim das 160 páginas, Camilo “fez as pazes” com o que aconteceu e pode enfim seguir em frente. A memória não funciona segundo a lógica médica da cura que vem depois do diagnóstico, da anamnese que precede a libertação. Pelo contrário: quanto mais multiformes se tornam as impressões que temos do tempo que passou, mais intricado e tridimensional é o seu efeito sobre nós.
De volta à trama: a infância transcorre com o embaraço de sempre até que, num dado dia, Cosme é trazido pelo pai de Camilo para casa. O garoto veio para ficar, e Camilo, que até então tivera como única companhia infantil na casa a irmã de sorrisos canhestros, reage com hostilidade à introdução do novo rapaz. Ressente-lhe a presença. Diante da primeira tentativa de fuga de Cosme, ridiculariza-o: “Burro garoto Cosme, mula”. Mas a narrativa habilidosa de Victor Heringer gradativamente faz com que, no meio desse lodaçal de rancor, desse estranhamento pueril, algo surja. E esse algo, a grande linha-mestra do romance, não é exatamente o amor: é a ternura.
Mesmo quando fala de assassinatos e dos porões da ditadura, ou da temperatura insuportável de um subúrbio carioca, ou da melancolia inevitável dos que passam a noite de Natal sem grandes famÃlias – mesmo quando fala de meninos e meninas abandonados, ou de uma sala de aula na qual se congrega todo o caleidoscópio da humanidade – mesmo quando a condição fÃsica de um garoto o impede de subir numa árvore para juntar-se à quele que, sem saber, já amava – mesmo diante da agrura, da crueldade, e do desastre minimalista, “O amor dos homens avulsos” transborda de ternura da primeira à última página. A prosa de Victor Heringer, pausada, é rica em perÃodos curtos não porque isso reforçaria a aridez da narrativa, mas porque o livro é um glorioso exercÃcio de contemplação. O romance é curto, fragmentário, mas não tem pressa: mesmo quando oscila entre presente e passado, o faz sem grandes alardes, como se estendesse uma mão amigável ao leitor que caminha pela vida pedregosa de Camilo.
Não há melodrama. Em um certo ponto, o narrador afirma que não existe essa história de amar duas décadas em duas semanas, ou qualquer coisa que o seja. Quando se ama um dia, ama-se um dia, e muito desse dia é perdido em silêncios e obrigações, esvai-se em momentos de distração, de brigas frÃvolas, de desatenção. Se eu estou lavando a louça enquanto você dorme no quarto, estou te amando? Eu não sei, Victor Heringer não sabe, Camilo e Cosme não sabem; e no entanto é esse não saber que nos é oferecido. “O amor dos homens avulsos”, o tÃtulo em si, talvez seja algo pleonástico, mas não deixa de preservar certa riqueza: todo amor tem um componente irreprimÃvel de alheamento, de ser-desengonçado, mas também uma vontade vital de coerência. O amor sempre manca, mas nunca para de caminhar. Todos os homens são mais avulsos quando amam, e menos avulsos porque amam.
É à pintura de uma parte dessa caminhada errática e escorregadia que se prestam as páginas de Victor Heringer, entrecortadas por imagens, listas, desenhos, fotografias. Anda o amor, palmilha e tropeça o amor, e no seu caminhar as pessoas trocam pequenos presentes entre si: pedrinhas, recados, um livro sem capa, o que mais? Trota o amor, recua e ajoelha o amor, e ao longo do caminho há um medo horroroso de que algo esteja dando errado, um desejo materno de proteger a chama incipiente. Respira com sofreguidão o amor, toma apoio numa balaustrada, e enquanto coloca um pé na frente do outro acaba por tingir absolutamente tudo que o precedeu, assim como o que virá depois. O primeiro amor é um segundo nascimento, e a convicção que Victor Heringer tem dessa verdade desagua em cada uma dessas páginas.
Eu não sei se qualquer pessoa poderia escrever um romance sobre primeiros amores, como talvez qualquer brasileiro pudesse encenar “O Auto da Compadecida”. Seria preciso submeter a hipótese a teste.
Tracemos uma linha na areia: os que podem e os que não podem. De um lado, os que enxergam a multitude de Ãmpetos, o soçobrar interno, a cor, o cheiro, o primeiro beijo, a primeira mão aqui e ali, o eu e o outro transformados num caos – e sabem falar de tudo isso. Do outro lado, os que teriam o espÃrito torpedeado e ficariam paralisados, de boca aberta, sem saber o que os atingiu. Victor Heringer definitivamente pertence ao primeiro grupo e, como tal, assegurou seu lugar do lado de lá da nossa linha na areia. Uma obra-prima.2010s31 s Marcela DantésAuthor 7 books42
Reler esse livro agora, que coisa difÃcil, doÃda e doida. Um dos romances mais importantes dos dias atuais, um choque. Um buraco. Um puta livro de um puta escritor. E a gente que perde, perde e dá vontade de nunca mais rrarrarrir. Vai bem, Victor Heringer.32 s od1_40reads240 76
Oh myÂ…
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